quarta-feira, 11 de agosto de 2010

Rascunhos De Adoração

Rascunhos De Adoração

Tudo começou quando abri minha gaveta pra procurar algo, e percebi uma grande quantidade de papeis com desenhos variados. Arte de minhas filhas, não era incomum quando fosse deitar achar algum desenho debaixo do travesseiro, ou bilhetes coloridos que me certificavam que eu era um pai amado.
Fui guardando na gaveta do criado-mudo e a gaveta foi-se enchendo; tinha chegado enfim, o dia de esvaziar a gaveta. Afinal de contas, alguns daqueles desenhos ficaram meses, até anos guardados ali, as meninas não iriam se importar se eu os jogasse no lixo. Na verdade, nem lembravam mais da maioria deles, exceto um ou outro que entregavam duas, três ou quatro vezes, até que dávamos a devida atenção; afinal, tinham passado algum tempo se esmerando em uma declaração de amor por seus pais e agora queriam de retorno, o amor motivador e tão referenciado na arte.
Minha filha Rebeca começou a se sentir mais à vontade com as canetas, bem antes de completar um ano... Comecei ter que escondê-las para que não riscasse tudo pela frente, inclusive as paredes e os móveis de casa; foi aí que eu e minha esposa Andréia achamos que já estava na hora de ensinarmos a Rebeca como usar um pedaço de papel.
Não demorou muito até que surgissem os primeiros esboços de algo que podíamos reconhecer: uma letra um numeral, um bicho ou um objeto, com o tempo e a idade iam se tornando mais condizentes. A esta altura um outro hábito já havia há algum tempo se tornado comum a nós; nossa filha sempre nos presenteava com seus desenhos.
Passados dois anos e alguns meses do nascimento de Rebeca, nasceu Maressa. O processo foi o mesmo, embora um pouco mais rápido. É que Rebeca não tivera irmãos mais velhos desenhando antes dela, no entanto, Maressa a via nos presentear com seus desenhos, com boa freqüência; imitá-la, foi uma questão tempo.
Naquela altura, tínhamos duas filhas desenhistas em casa; pelo menos é o que as fazíamos pensar. Com cada exclamação teatral que fazíamos ao receber seus desenhos, dizíamos involuntariamente: “Ô môoooor! Nossa! Vem ver isso! Mas que maravilha filha! Foi você que fez? Sério? Como você conseguiu? Me ensina?” Enquanto o outro já completando – “Mas que coisa mais linda! Ah! Eu também quero! Quê? Só pra ele? E eu? Eu também quero um pra mim.”
Não era mentira, era exagero; na intenção de estimulá-las, não as deixávamos que percebessem o quanto seus desenhos ainda eram imperfeitos. Com isso parecia óbvio pra elas que seus desenhos nos agradavam mais que as outras atividades até mais importantes que também realizavam, mas sem arrancar de nós tanta euforia.
Eu nunca percebera isto antes; só bem depois do dia da gaveta cheia, mas naquele dia, eu estava disposto a não deixar mais que coisas sem importância e papéis desnecessários ocupassem tanto espaço nas minhas coisas. Juntei todos os desenhos, e decidi me desfazer deles.
Foi revendo um ou outro desses papeis, que comecei ouvir no meu entendimento, o Espírito de Deus a ministrar e me advertir. Era como se Ele me dissesse:
Já pensou se Deus fosse juntar todas as músicas que você já cantou pra Ele e decidisse se livrar delas? Você não acha que suas adorações antigas ainda ocupam um lugar no coração do Pai? Ou você imagina que sabe realmente cantar e dizer com propriedade das coisas espirituais?

Comecei a estabelecer então uma fina relação entre o meu coração de pai e o coração de Deus, entre os desenhos de minhas filhas e as minhas canções.
Lembro-me quando estava quarta série do primário, aliás, me lembro bem daquele ano de 1977; foi o ano em que fiquei para recuperação em matemática e fui reprovado no exame final por uma conta de dividir, enfim, repeti a série. Naquela época as escolas, talvez pelo regime da ditadura militar, mantinham um calendário de datas cívicas que eram comemoradas com hasteamento da bandeira, hinos oficiais e atividades do corpo docente e/ou alunos.
Costumo contar que foi no dia 31 de março, dia do Soldado Constitucionalista, mas não posso afirmar com certeza. Mas o que me lembro que a professora me deu alguns versos de exaltação ao tema da data e eu os perdi. Procurei a professora e lhe relatei o infortúnio, mas ela me repreendeu dizendo que eu fizesse novos versos, mas que não falhasse na apresentação da classe.
Voltei para o meu lugar, peguei o lápis e o caderno e comecei a tentar lembrar dos versos que me foram confiados. Depois de um pouco de tempo, tive a sensação de que conseguira lembrar de tudo e desci com a classe para a celebração cívica daquele dia, cumprindo o meu papel sem maiores problemas, exceto pela professora me indagar insistentemente pela fonte dos versos que li, pois não eram os que ela havia me passado.
Acho que ainda hoje em dia, aquela professora não deva cogitar que naquele dia eu sentei na minha carteira e escrevi minha primeira poesia, graças a sua forma peculiar de me advertir; soube que naquele dia, ela reescrevera os versos, e que por algum motivo alheio, não mos dera novamente.
Se tornaram comum na escola as declamações de versos de minha autoria. Eu descobrira que podia escrever versos e os fazia com freqüência. Dois anos depois eu estaria aprendendo a tocar violão e naturalmente meus versos ganhariam melodias e se tornando músicas que professores e colegas esperariam ouvir nas comemorações.
Mas há antes uma outra experiência que me levara a tudo isto. Em 1976 eu havia sido transferido de escola e era um período ruim de adaptação. As classes se posicionavam em fila no pátio do colégio, cada professor descia para recepcionar e guiar assim o caracol de seus alunos até suas salas.
A professora que veio nos buscar era toda espalhafatosa. Vestia-se bem, embora em tons berrantes e calças compridas sempre bem justas; bem justas mesmo! Usava uns óculos grossos, caucasiana de traços nordestinos, cabelos crespos, mas mediamente longos (e sempre presos como coque ou rabo de cavalo). De sorriso largo e faceiro, se apresentou na classe e fez questão de frisar que era baiana. Eu a chamo carinhosamente de Made in Bahia.
Na primeira sexta feira que chegou, logo após o recreio, a Professora Made in Bahia foi guardando todo o seu material e nos levando a fazer o mesmo, foi logo arrematando a situação:
___ Hoje é um dia especial. Hoje é sexta-feira; toda sexta-feira, nós vamos tratar das artes. Você pode vir aqui na frente e cantar o que você quiser.
E foi logo tratando de desinibir a classe ensinando todo mundo a cantar “O que é que a baiana tem?” E aos poucos todos estávamos cantando, batendo palmas e dançando.
Chegou-se a ponto de que não víamos a hora de chegar sexta-feira, e apesar de que quase sempre se cantava as mesmas músicas, era pra gente, o melhor momento da escola.
Um dia, decidi que chegara a minha vez de cantar lá na frente, então, atrevida e corajosamente, levantei minha mão; eu seria o próximo.
___ O que você vai cantar Ezequiel?
___ Uma música nova – Eu revelei sendo distinto (tinha que querer ser diferente!).
___ Pode começar – Liberou Made in Bahia.
___ Mas é em inglês – Quis impressionar (Tss... Tss... Tss...).
___Vai! Então canta – Se fez de impaciente e curiosa; afinal estávamos no terceiro ano primário, e a matéria da língua inglesa só era administrada na quinta série ginasial.
Havia um hineto que cantávamos com freqüência na igreja: “Eu tenho paz como rio” e então imaginei como seria cantar isso em inglês e sem mais cerimônias, mandei:

“Don lindom lai don do lindom
Lai dom do lindom
Lai don do lindom ól centi ól
Don lindom lai don do lindom
Lai don do lindom
Lai don do lindom ól centi ól
Ricréssi don cara praste
Don cara praste
Don cara praste ól centi ól
Ricréssi don cara praste
Don cara praste
Ricréssi don cara praste ól centi ól”

A sala aplaudiu e a professora batia palmas entusiasmadamente e este passou a ser o hit de todas as sextas-feiras do ano, razão pela qual eu nunca mais esqueci este lirismo pitoresco.
Muito amistosa Made in Bahia chamava outras professoras para que me ouvissem cantando em inglês, e eu prontamente repetia meu “Don lindo lai”, os colegas queriam aprender a música e, pasmem! Made in Bahia na ocasião do seu aniversário, chamou as mães de todos os alunos, todos os professores, e antes dos comes e bebes, exigiu que eu cantasse “Don lindo lai” para ela, o que previamente me advertiu ser seu melhor presente de aniversário. Então antes do “Parabéns pra você”, minha professora baiana, embora o aniversário fosse dela, me deu seu melhor presente. Eu cantei e ela chorou emocionada, várias mães me abraçaram e beijaram junto com ela.
Na quinta série durante as aulas de inglês veio a constatação: “Don lindo lai” nunca fora inglês nem de longe! Embora eu já soubesse, Made in Bahia nunca me desestimulou, me fez acreditar que eu podia tocar o seu coração e o de outras pessoas com aquilo que nascera de mim.
Começo imaginar que talvez minhas meninas até saibam sobre seus desenhos, mas no silêncio de suas almas há sementes de gratidão, porque suas expressividades não foram tolhidas pela sinceridade desnecessária que eu ou Andréia poderíamos revelar diante daqueles desenhos. De alguma forma eu sei o que é isto, e elas também sabem.
Obrigado Made in Bahia. Obrigado por sempre admirar meus desenhos lingüísticos, meus desenhos rítmicos, meus desenhos harmônicos, e meus desenhos melódicos.Hoje a arte musical que emana de meu ser, também te traz honra. Você se deixou ser usada por Deus e me deixou sonhar; que Deus te abençoe.

Por E.H.S. Kyniar

Postado anteriormente em:
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